24 December 2018


A PASSAGEM DE UM ANJO

As luzes cintilavam, brilhantes e coloridas, enfeitando o centro da pequena cidade. Quando a noite caía, o manto negro da lua estendido sobre a localidade, realçava a brancura da neve e as decorações festivas. Os habitantes, bem resguardados do frio, passeavam calmamente admirando a beleza do lugar e a alva dádiva da natureza que se acumulava nos telhados e muros das casas, nas bermas dos passeios assim como na escultura de pedra no centro do jardim. A mercearia ainda estava aberta, o sapateiro continuava a pregar solas novas nos sapatos, a livraria publicitava a última obra do escritor da terra e a loja dos brinquedos estampava no rosto das crianças o misto da surpresa, da alegria e desejo de receber uma prenda. Era Natal!

- Toni, sou o Toni..., para faciltar!, dizia com a graça e humildade de quem se habituou a pedir. O metro e oitenta de outros tempos esfumaram-se no corpo encolhido para se defender do frio, das pernas dobradas para mendigar e no peso dos anos que se iam adicionando. Já ninguém lhe perguntava o nome mas ele dizia, falando consigo próprio e ao seu companheiro ursinho, um boneco usado, de orelhas redondas e castanhas, os olhos negros, dois simples botões, um pregado e o outro descosido tombando sobre uma das faces como uma lágrima corrida. 

Nessa noite, o frio redobrara de intensidade, os flocos de neve amontoavam-se sobre a já existente e Toni, para se defender da agreste temperatura, espremeu o corpo contra uma das paredes de pedra da escultura no centro do jardim. Pegou no ursinho e poisou-o num espaço liso da escultura, virado de costas para ele. Na escuridão da noite lançou a corda sobre um dos braços da escultura e prendeu-a com firmeza. Subiu para o pedestal de pedra da escultura e enfiou o laço ao redor do pescoço. Olhou para o ursinho que de costas voltadas, não via as lágrimas que lhe humedeciam as faces. - Adeus meu amigo!, disse num tom triste. Respirou fundo e fez apelo ao desespero que é a coragem de quem nada mais tem. 

Nesse instante, o latir assanhado de um cão invadiu o silêncio.  Direcionara o focinho para o mendigo e ladrava violentamente com as pernas da frente esticadas para diante, num gesto de denúncia. Toni ficara especado, nāo ousava mover-se, incrédulo com a atitude do cachorro de olhar esgaziado que nāo parava de latir. O mendigo tirou o laço do pescoço e o animal soltou então um gemido dócil esfregando o focinho entre as patas. - Boa noite meu amigo..., disse tremelicando a voz. O cāo agitou vibrante a cauda e desapareceu na noite enquanto o dono caminhava no seu encalço. 

Vendo o mendigo que se expunha agora à luz de um candeeiro, saudou-o com um aceno erguendo o braço e dizendo: - Boa noite, senhor...?  

O mendigo sorriu apertando o ursinho contra si.

- Toni, sou o Toni..., para facilitar!

- Feliz Natal senhor Toni!

                                                                                                                                                                                                                                                
                                                                                                                Adriano Centeno
                                                

                          “Natal em Palavras – Colectânea de contos de Natal”, Chiado Books, dezembro 2018


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