A PASSAGEM DE UM ANJO
As luzes cintilavam, brilhantes e coloridas, enfeitando o centro da
pequena cidade. Quando a noite caía, o manto negro da lua estendido sobre a
localidade, realçava a brancura da neve e as decorações festivas. Os
habitantes, bem resguardados do frio, passeavam calmamente admirando a beleza
do lugar e a alva dádiva da natureza que se acumulava nos telhados e muros das
casas, nas bermas dos passeios assim como na escultura de pedra no centro do
jardim. A mercearia ainda estava aberta, o sapateiro continuava a pregar solas
novas nos sapatos, a livraria publicitava a última obra do escritor da terra e
a loja dos brinquedos estampava no rosto das crianças o misto da surpresa, da
alegria e desejo de receber uma prenda. Era Natal!
- Toni, sou o Toni..., para faciltar!, dizia com a graça e humildade de
quem se habituou a pedir. O metro e oitenta de outros tempos esfumaram-se no
corpo encolhido para se defender do frio, das pernas dobradas para mendigar e no
peso dos anos que se iam adicionando. Já ninguém lhe perguntava o nome mas ele
dizia, falando consigo próprio e ao seu companheiro ursinho, um boneco usado,
de orelhas redondas e castanhas, os olhos negros, dois simples botões, um
pregado e o outro descosido tombando sobre uma das faces como uma lágrima
corrida.
Nessa noite, o frio redobrara de intensidade, os flocos de neve
amontoavam-se sobre a já existente e Toni, para se defender da agreste
temperatura, espremeu o corpo contra uma das paredes de pedra da escultura no
centro do jardim. Pegou no ursinho e poisou-o num espaço liso da escultura,
virado de costas para ele. Na escuridão da noite lançou a corda sobre um dos
braços da escultura e prendeu-a com firmeza. Subiu para o pedestal de pedra da
escultura e enfiou o laço ao redor do pescoço. Olhou para o ursinho que de
costas voltadas, não via as lágrimas que lhe humedeciam as faces. - Adeus meu
amigo!, disse num tom triste. Respirou fundo e fez apelo ao desespero que é a
coragem de quem nada mais tem.
Nesse instante, o latir assanhado de um cão invadiu o silêncio.
Direcionara o focinho para o mendigo e ladrava violentamente com as pernas da
frente esticadas para diante, num gesto de denúncia. Toni ficara especado, nāo
ousava mover-se, incrédulo com a atitude do cachorro de olhar esgaziado que nāo
parava de latir. O mendigo tirou o laço do pescoço e o animal soltou então um
gemido dócil esfregando o focinho entre as patas. - Boa noite meu amigo...,
disse tremelicando a voz. O cāo agitou vibrante a cauda e desapareceu na noite
enquanto o dono caminhava no seu encalço.
Vendo o mendigo que se expunha agora à luz de um candeeiro, saudou-o com
um aceno erguendo o braço e dizendo: - Boa noite, senhor...?
O mendigo sorriu apertando o ursinho contra si.
- Toni, sou o Toni..., para facilitar!
- Feliz Natal senhor Toni!
Adriano
Centeno
“Natal em Palavras – Colectânea de contos
de Natal”, Chiado Books, dezembro 2018
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